Love Saves the Day
Em Fevereiro de 1970, o DJ nova-iorquino David Mancuso convidou um grupo de amigos
para estarem e dançarem, no ambiente privado do seu apartamento, ao som de uma rigorosa
selecção de discos de música soul, funk, rock e experimental. O ambiente era descontraído,
alegre e – marcado pelo consumo de álcool e LSD – são descritas experiências visuais
intensas que vão orientando o movimento feérico dos corpos dançantes. No decurso desta
tarde histórica, estava inventado um novo conceito de festa, associado ao consumo de um tipo
específico de música e à criação de uma nova experiência para-sensorial e, com ele, todo um
novo enquadramento de relações sociais. Era o surgimento da chamada danse music culture
[cultura da música de dança] que teve, de facto, as suas raízes subterrâneas em NoHo e Hell's
Kitchen, com um florescimento no centro de Manhattan, e que se disseminou, nos primeiros
anos da década de 70, pelos subúrbios americanos e pela vitalidade urbana de cidades como
São Francisco, Los Angeles, Boston, Chicago, Newark ou Miami, e depois um pouco por
todos os contextos urbanos europeus, com o estabelecimento até aos dias de hoje de
verdadeiros templos e locais de culto como London, Ibiza, Amsterdam ou Berlin.
Espaços pequenos ou de grande dimensão, interiores e obscurecidos ou exteriores,
aproveitando uma relação particularmente estimulante com a natureza (e, em especial, com a
floresta), são eleitos como os cenários propiciatórios para a realização destes encontros.
Associada a uma condição alterada da percepção provocada pela recuperação de uma relação
música-corpo – com raízes nos processos ancestrais de transe e nas práticas da dança extática
– a cultura da música de dança é marcada por uma forte crença na utopia e no amor enquanto
valor orientador das relações entre indivíduos e comunidades para a edificação de uma
sociedade mais justa e equilibrada. A sua dimensão escapista é amplamente valorizada e
ancorada numa convicção em torno da possibilidade da combinação música-dança poder
ajudar a definir as premissas de uma sociedade alternativa organizada em torno do prazer em
detrimento das dificuldades, da expressividade em detrimento da uniformização, da
cooperação em detrimento da competição, da tolerância em detrimento dos preconceitos e da
comunidade em detrimento do indivíduo.
A construção destes ambientes é marcada por uma interação quase invisível (mas
permanente) entre o DJ e o público. É nesta comunicação subliminar que se vão
estabelecendo os contornos da festa, e é nessa interacção cúmplice que se funda o estado
crescente de alegria colectiva e o ponto de unidade espiritual onde os egos podem
desaparecer, onde o stress não tem lugar, e onde o nível de energia vital (marcado também
por uma sexualidade polimórfica) pode alcançar patamares em permanente crescendo.
De acordo com Tim Lawrence, a motivação originária dos organizadores destas primeiras
festas era eminentemente social, sugerindo que “se a festa não resolvia os problemas do
mundo, ela poderia, no entanto, ser o veículo onde poderíamos começar a imaginar um
mundo novo”. O aparente isolamento dos corpos dançantes permite-lhes uma desvinculação
da sua condição de indivíduo, preparando-os para uma vinculação ao todo, ao colectivo,
numa alegria crescente partilhada, justamente amplificada pela dimensão grupal. Dançar,
misturar-se, ligar-se, vincular-se, comunicar, amar, dar-se e dar.
Dançar e experimentar a possibilidade da experiência partilhada, da liberdade do movimento
e da liberdade do pensamento, imergir profundamente nesse lugar de verdade sem
constrangimentos e procurar nele uma possibilidade, um caminho, consciente de que é
sobretudo na deriva e na transitoriedade que se estabelecem os melhores encontros. Perder-se
para melhor se encontrar.
Neste processo simultaneamente projectivo, escapista e profundamente existencialista,
parecem cruzar-se duas dimensões fundamentais e propiciatórias dos processos de criação:
por um lado uma dimensão poética (liderada pela exposição da intimidade e de um
questionamento permanente em relação à condição do ser) e, por outro, uma dimensão
política (baseada na construção – ainda que onírica – de uma noção de colectivo e de
comunidade de partilha, onde as preocupações do indivíduo assumem uma condição
universal, e na assumpção da sua implicação na constituição de novos territórios de
liberdade).
Servem-nos estes parágrafos introdutórios para nos aproximarmos de algumas das questões
que povoam tanto a obra, quanto a prática, de João Motta Guedes, a pretexto da apresentação
da sua exposição individual “No Feeling is Final” na Galeria da Boavista, em Lisboa.
Com uma obra transdisciplinar, pós-conceptual e marcada por uma plena convicção nas
idiossincrasias pessoais, no percurso individual e na relação deste com o mundo, João Motta
Guedes tem vindo a desenvolver uma interessante investigação em torno do seu lugar e
posicionamento enquanto entidade que ‘está’ e ‘é’, procurando lançar conjuntos
de questões e premissas que ajudem a clarificar essa sua condição.
As ideias de deriva, de deslocação, de viagem, de alteração, de metamorfose são caras ao seu
universo programático e permitem-lhe empreender um sistema de questionamento
exploratório em torno do eu (compreendido como o sujeito e a sua circunstância). A
concepção de obras cuja formulação procura integrar o recurso metafórico da viagem –
usando elementos estruturais extraídos directamente dos contextos originais de transporte
(como os aviões ou os comboios) – e em que a ideia de caminho indeterminado surge numa
procura da valorização do processo e da intemporalidade da viagem em detrimento do seu
destino final, assumem um importante lugar na sua investigação.
Os conjuntos de obras ou séries de trabalhos parecem constituir-se como formulações
definidas e enquadradas num determinado tempo e espaço, desenvolvidas, muitas vezes, a
partir de uma mesma ideia. Tendencialmente instalativas – combinando imagem, objecto,
som e, muitas vezes, linguagem escrita ou dita – resultam, como sempre no jogo da criação
contemporânea, de uma negociação honesta com as matérias e com os processos, na procura
da forma, da melhor forma possível para que possa cumprir-se a revelação da sua máxima
potência.
O recurso à linguagem poética é um dado eminentemente presente na sua obra, constituindo-
se como um primeiro momento de exposição do seu lugar de intimidade. Pensa poeticamente,
escreve poeticamente, vê poeticamente, concebe poeticamente. O gosto alimentado pela
leitura dos poetas românticos e a atenção particular que dedica à semântica, à concretude da
linguagem e à sua condição formal, enquanto veículo para a promoção de estados emocionais
particulares, estabelecem-se como um lugar privilegiado para a exploração livre e para o
encontro da unicidade (que concebe, simultaneamente, como universal).
Esta ideia de substrato emocional intensamente partilhado e partilhável, que aproxima
universalmente os seres, permite ao indivíduo a imersão no colectivo – como vimos no caso
da cultura da música de dança – aproximando-o de uma espécie de possibilidade imaterial
através do desejo de transcendência, e é condição fundamental para a edificação de um
processo criativo concentrado e sério. É justamente através da experiência transcendental do
corpo – do entendimento da sua condição para-corpórea concedida pela dança, pela
meditação ou pelos estados alterados de consciência, por exemplo – que o corpo se institui
enquanto modelador que vai desenhando a sua forma física a partir da sua experiência
emocional. Numa perspectiva fenomenológica, o corpo (físico) resulta justamente do modo
como a vida se faz Vida.
A exposição “No feeling is final” 2 parece-nos assentar, desde logo, na assumpção de que o
território da arte e da criação se podem constituir como lugares privilegiados para a possível
concretização desse desejo de transcendência.
Instalar um conjunto de objectos no espaço, por forma a poder proporcionar com eles – e,
sobretudo, com as relações estabelecidas entre os seus campos magnéticos de actuação – um
determinado ambiente promotor de determinados comportamentos ou estados de atenção, é
algo que reverbera um conhecimento há muito adquirido, instituído e postulado na
experiência ritualizada da arte e que lhe permite aproximar-se de outros contextos igualmente
ritualizados. Neste sentido, toda a exposição se edifica em função de dois espaços distintos –
um amplamente iluminado através da presença de luz natural directa – e outro profundamente
obscurecido.
Ao atravessá-los somos imediatamente assolados por uma ideia de transição, de passagem, de
mudança de lugar, que decorre, necessariamente, da experiência fortemente contrastada que
temos nos dois espaços (e em tudo o que criamos a partir do que não está, mas poderia estar
entre eles). A ideia de transporte, a que fizemos já referência, está muito presente neste
deslocamento que é muitíssimo mais do que físico e temporal. É um deslocamento do ser
(artista/autor), mas também do ser (espectador), através dos muitos planos multidimensionais
que projectamos nesse percurso entre o piso 0 e o piso 1, e que nos permite assumirmo-nos,
desde logo, como participantes activos no âmbito desta experiência sensorial e
eminentemente emocional.
Encontramo-nos assim imersos num lugar de transcendência que opera tanto na vibração da
luz natural, quanto no recolhimento e na intimidade da palavra, da voz e da quase ausência de
luz, dando novamente lugar à experiência da vibração visual e cromática, num processo que
sublinha o carácter cíclico e indeterminado deste tipo de experiências e nos desvia de uma
estrutura narrativa linear.
O conjunto de três vitrais apresentados na sala do Piso 0 resultam da ampliação de três
desenhos pré-existentes. Estes desenhos, a par de um conjunto muito significativo de outros,
têm na obra na obra de João Motta Guedes um papel projectivo e são exemplares da sua
necessidade automática e muito intuitiva de registar ideias poéticas através de uma linguagem
gráfica e eminentemente visual. Repetidamente, nas suas numerosas séries de desenhos, são
retratadas criaturas e formas regidas pelas forças dinâmicas de figuras para-humanas,
animais, vegetais ou cósmicas, criando uma cosmologia formal própria. Figuras que habitam várias
dimensões do mundo e se organizam para além da lógica racional que anima a nossa vida quotidiana.
As criaturas representadas nos três vitrais – híbridas, não-binárias (que, na sua formulação,
ultrapassam o antropomorfismo) – parecem afirmar-se como representações celebratórias de
estados eufóricos, resultantes de uma espécie de encontro cósmico ou de um momento
extático (voltamos ao contexto da cultura da música de dança).
A subida à sala do Piso 1 obriga, em primeiro lugar, a uma adaptação da nossa acuidade
visual para que possamos percorrer o espaço e observar – com a deslocação física do nosso
corpo – a forma metálica ali depositada e que ocupa grande parte da sala. Um conjunto de
tubos de aço surge desenhado organicamente no espaço, e a partir de três das suas
extremidades conseguimos ouvir uma voz (a do artista) que lê três poemas da sua autoria
seleccionados para o contexto específico desta obra e exposição. A presença da voz permite-
nos entender esta escultura sonora como um corpo. A sua materialidade (aço) assegura a
distância do espectador (que desenha uma coreografia de movimentos para aceder ao
sussurro), garantindo-lhe – na sua condição corpórea – manter-se seguro da sua singularidade
e da sua intimidade. Uma presença visceral (e gutural), viva, em movimento, também ela em
metamorfose, que se expõe inquieta e livre na assumpção da sua condição emocional múltipla
e transitória. O corpo (físico) a fazer-se Vida.
A intensidade emocional atinge nesta sala maior profundidade, e é sem surpresa que
entendemos a aproximação a Rilke e à sua sugestão de exploração máxima da intensidade de
um determinado sentimento. Liberdade, vulnerabilidade, amor e violência.
Aqui a noite cintila a partir de uma esperança utópica, que a luz do dia dificilmente poderá
fazer nascer. O amor salva. “No feeling is final”.
Ana Anacleto
Dezembro de 2024